15.9.05

ELA NÃO PODIA EVITAR

Ela estava sentada no escuro da sala.

Olhava fixo para o quadro atrás da mesa de jantar, onde os poucos reflexos da rua morriam, na penumbra das cores incertas.

Os vagalhões eram enormes pinceladas, obtusas e disformes, como se a poesia ali nascesse por acaso de um fortuito e insuspeitado enlace entre as massas de tinta e os espaços vazios, à revelia do artista, "incongruências harmoniosas" e espumantes no que parecia um horizonte longínquo - uma quase malformada linha plana no alto da tela.

Era noite quente e silenciosa - nada mais só para Anita, à flor da pele sob um teto de zinco.

Onde estariam as espaçonaves alienígenas, hora destas?

...e nem sequer viris psicóticos, brandindo serras elétricas.

Apenas noite quente, e só.

Insone, acendeu a cozinha para preparar uma vitamina.

Os pés descalços circulavam mecanicamente, velhos conhecidos daquele piso xadrez.

Escolheu quase aleatoriamente algumas frutas, providenciou o liquidificador, e logo os pedaços grandes de maçã eram triturados pelas lâminas de aço, chocavam-se contra o copo transparente e escorriam para o fundo, caminho único para a morte do fruto e o renascer em suco, em domínio do humano controle sobre as criaturas.

Outros pedaços, de manga e bananas, foram colocados, e igualmente duelaram contra a máquina extintora.

O barulho digestivo era ensurdecedor, e Anita percebeu que uma das lâminas havia se partido, durante a peleja.

Dentro, o silêncio da revolta contida, das formas reprimidas e convertidas. Mais harmonia. Mais progresso, e prova disso era o uníssono do liquidificador, invencível. Dominante.

Desligou.

Novamente silêncio. Ensurdecedor silêncio. Obliterante.

Julgou ouvir o sangue a percorrer-lhe; as conexões cerebrais, o pulsar dos corpos, a freqüência da Terra, os ventos solares.

A vitamina expirou algumas bolhas de ar, contaminando aquela atmosfera de suspensão. Anita realmente não tinha sede, sequer fome.

Mas ouvia o vazio; há dias sonhava com ele. Aguardava através das noites impaciente, de olhos semi-abertos, focando a porta por onde ele entraria, sorrateiro.

E embora os dias passassem, viessem e morressem, renascessem e perdurassem, insípidos e inexoráveis - ela sabia que apenas tardava a hora em que ele chegaria. Então esperava.

Riscou um sem-fim de dias nos calendários, consecutivamente. Escrevia e reescrevia cartas de despedida, endereçadas a estranhos. Vivia o último dia sem findar de últimas horas.

Bilhetes de instruções espalhavam-se pela casa, resumindo os detalhes a não esquecer, no último instante.

E no entanto agora, rugas de distância dos tempos em que mal dormia, ela o pressentia. Como um sentimento vivo de alheamento, de subtração, de paz medonha e escura.

Empunhou o copo, onde desaglutinavam já os sumos adocicados da derrota. Sorveu um gole lento.

A entrega seria fatal, mas a queria? Talvez. Dar o passo no sem-espaço poderia não completá-la, não conformá-la. O vazio atraía-lhe, sentia os pêlos magnetizados, o corpo tendendo para a porta, os olhos mortos naquela direção.

Com dificuldade, talvez relutância, bebeu outro pouco.

Calafrios varavam-lhe as coxas, dorso, nuca.

O incômodo da espera motivava vida; vivera pela espera incerta do desconhecido. Sofrera o mal de corroer-se interiormente por ele, venerara-o, mitificara-o . Não era tudo. Era o nada.

O silêncio absorveu o resto da vitamina. Os móveis, a pia. Algum pouco de chão atrás da porta e Anita Rinsac sobraram indecisos. Ela teria de girar o trinco. Teria de abrir a porta, olhar o outro lado - se é que ainda estava lá.

Quis sentir o gosto da manga, mas fora-se com os instantes.

O deslocar dos olhos, constatou, devorava o entorno.

Fixou os olhos na porta.

Os batentes foram-se, os trincos e dobradiças também. Era questão de um passo.

Fechou os olhos, sem espera. Sentiu a negridão severa abraçar-lhe à distância. O breu das almas que rondava seguro, apertando o cerco... Brincava de vilão, seduzia, envenenava.

Anita sentiu frio, e instintivamente cobriu os seios nus e o ventre com as mãos. Dali não sairiam vidas, nem continuidade.

Quis dar o passo vendado,mas não sentiu os pés.

O Vazio fora chamado, e de longe viera, solícito. Impunha-se: era Cobra Grande que serpenteasse por entre as pernas e braços dela, instigante. O abraço cordial dos vencedores.

Anita abriu os olhos.

Escuro, mais escuro.

Era quase comunhão, quase vítima imolada e concorde com o Mal... faltava-lhe o busto e a cabeça ainda vivos.

Da garganta se arriscaram alguns soluços abafados. Ainda respirava, apesar, e a língua tencionou rebelar-se.

Ergueu o queixo para a réstia de ar que lhe envolvia a cabeça, no estertor vulgar dos quase-afogados.

Encarou o Vazio.

Ele sorria-lhe, insaciável. Infinito. Impermeável a entendimentos.

Sobraram os olhos. Tardava a fechá-los, recusava o final instantâneo.

Lacrimejou, estática. Não houve som, mas a produção de espaço estranhou o Vazio.

Ela não podia evitar, e choveu e salgou espaços iriscidentes, irradiantes, naus embarcando rumo ao desconhecido, peões que se atiravam contra o inimigo inevitável.

A mudez do nenhures agitou-se, incomodada.

Os olhos vertiam copiosa efluição, nublados, abrindo espaço e gerando tempo.

O Vazio retraía-se, cachoeiras incontíveis o condenavam aos limites do entorno cada vez maior de matéria, esta que abria dedos e raízes em todas as direções.

Os olhos eram fontes, e as fontes recriaram o corpo, lábios e sons, ventre e vida, o pé incerto que achou o chão e tombou, diante da porta aberta com trincos e dobradiças, bilhetes voando em meio à ventania que soprou forte o dilúvio de lágrimas, trouxe terra seca e o copo vazio pela metade, Anita desfalecida à soleira de casa.

Novamente silêncio.

Silêncio cheio. Completo.

Ela balbuciava com os dedos, sobre o chão xadrez.

Alguns pássaros matutinos alardearam as primeiras horas, do primeiro dia.

Anita ouvia. Ficou só ouvindo. O Sol penetrar solene o globo azul do dia, o mato evaporar o orvalho.

A espera a esperava, novamente e sempre.

E lembrou da lâmina, partida.


Chácara, 21.09.2003

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