12.9.06

After Hours

ela ardia, ele negaceava; ela prometeu se atirar da janela. ele acendeu outro. ficaram os dois assim, mudos, mais a fumacinha que saía em rolinhos pensados por sobre suas cabeças. ela amuou um tantinho, se encolheu de lado, fazendo bico. ele nem.

ela bufava quase baixinho, como se pudesse: "por quê? por quê?!" - mas não acharia resposta alguma, não ali, onde as quinas completavam noventa, as cores eram brandas e da rua só se ouvia a matraca do amolador de facas. facas! ela de um pulo se levantou, ficou em pé na cama; agora ele teve de erguer a cabeça, mirá-la de alto a baixo. e de baixo parecia mais esguia, meio serpente e os olhos oblíquos por entre os cachos poucos que vacilavam ébrios junto ao nariz. e o sorriso maroto. ele fumaçou outro tanto - preto velho - olhando, esperando. ela segurou o suspense...

mais não vale enredar: ela foi até a cozinha, buscou uma faca de desossar porcos, chegou junto ao leito de fornicamentos e reluziu o metal frio nos olhos do desafeito amado. ele franziu a testa, esboçou desaprovar. ela gritou com a ira dos deuses - ele deixou pender a bituca no lábio seco. what a fuck...?!

clímax: ela atirou a faca como seu tataravô samurai teria feito, a lâmina girou no ar, cortando os espaços tórridos; ele pensou na vida como num filme de trás pra frente, a vida era de trás pra frente, tinha certeza de que tudo já acontecera, o grito, a lâmina ofuscando em elipses buscando sua garganta.

enfim: a faca cravou torta no abajur do criado-cego à esquerda (samurai era o tatata) e a louça caiu macia no carpete, gemendo abafado. ele arrancou o filtro quase queimado da boca, parecia James Dean, esfregou as mãos na cabeça e atacou: papéis voando, uma xícara pulando de seu colo, os chinelos deslizando slow motion para debaixo da cama. mirou a derrota estampada na face dela, não perdoôu: estapeou-a uma vez. a recíproca foi verdadeira. "vadia". "bastardo".
ele tascou-lhe um beijo com fúria, mordeu-lhe os lábios, mordeu-lhe a nuca, os ombros, o corpo. ela gemia e deixava.

no silêncio murmurante, voltaram para a cama.

mas a luz do abajur da direita só apagou depois das três. e meia.



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10.9.06

Nas Veredas da Noite Dentro

ontem foram-se mais algumas pedras.

não significaria muito isso se, além das dobradiças enferrujadas e os batentes há muito desmantelados, uma parte da parede lateral esquerda também não estivesse sendo, lenta mas inexoravelmente, chamada ao repouso diabólico, à fragmentação de sua razão - e ao meu conseqüente desespero. por ali passaria um urso, se algum houvesse que não fugira dos rigores da estação mais severa - esta em pleno curso. mas sem ursos, sem raposas, sem a voz mais selvagem dessa natureza incontinenti, o que me despertava o instinto profundo era mesmo as cortantes e gélidas rajadas de vento, um verdadeiro canal de vento, que se infiltrava pela brecha nas pedras, pelo cada vez maior buraco que se fendia, voraz, na parede à esquerda.

então ruía silenciosamente. e os lampiões na varanda também não garantiam, pois a pouca cêra que restou em dois deles, talvez os únicos capazes a contento, estavam úmidas e como que desaglutinando os compostos carburescentes, o que inviabilizava, desde então, seu uso mais imediato.

às escuras, sem água qualquer, sem abrigo do gelo, e enfim com um punhado de cartuchos restando no fundo da algibeira (que tampouco se lembrava dum lombo equino), eu me postava sentado diante da lareira - acesa sobre uma pilha de livros enjeitados, acomodado no pêlo de iaque que um inuíte me presenteara, no amarelado verão de 48... ou 50. 50? isso pouco fazia. mas mantia minha mente ocupada, enquanto os membros ganhavam inércia própria, cedendo à ordem do vento, e me recusando seu prestimoso auxílio.
lá fora, estalos rondavam a clareira. alguns uivos de euforia, ganidos excitados, latidos ecoando no paredão de rochedos à minha frente, após o rio insolente. somente ele, o rio, sentia-se indiferente à sorte dos demais viventes, e concentrava-se em suas orações diuturnas, mantras tantas vezes hipnóticos como... traiçoeiros.


os ganidos se aproximavam, tridimensionais e factíveis. assim como meu ranger de dentes, e ossos, e vértebras, enregelado e quase morto. "quase" era parte da minha recusa. não quero comentar agora os motivos que me levaram à sua breve reprovação, apenas relato como foram os dias de minha passagem por esta terra que jamais me acolheu, sobre seus habitantes que nunca me reconheceram par, desta natureza vil e medonha. e o medo estava agora nas pegadas pequenas e nas mandíbulas azeitadas de pequenos e famintos lobos.

a noite ia longe de terminar, e minha vigília carecia de atenção, carecia do embalo certeiro do encadear de palavras, do som da voz com palavras, a voz que ritmaria meu acordar sentinela - ante o sono imperioso, o perigo iminente e a resistência imortal.

(continua)

6.9.06

Plutônica

invernal propósito: ou pretexto, como queiram: transbordando de irrazões passionais, e me podam a inspiração. tão só porque o grande olho se instalou ao lado desta janela para o meu mundo, e seu chiado me esgota qualquer boa vontade, qualquer sensatez civilizada.

o olho despeja pra dentro de minha sala um viés distorcido da paisagem imagética do mundo - o outro que não o meu. a janela me aguarda com seu mar de possibilidades - e lugares-comuns, mas sou eu quem decide por eles (ou não) -, com um infindar de melhores motivos para extravasar o coração sincopado, afogado até aqui dos açúcares de uma flor estranha que cresce nas encostas do grande Atlas. o que quer dizer o mesmo que: nada. mas isso você já sabia...

e eu mencionei o "invernal propósito" buscando entender o que me leva ao despedalar de inocuidades, sempre que o clima se revolve nas estratosferas, e as paredes parecem encerrar um ar viciado e inoperante, ensurdecem aos rumores da grande teia e tudo fica pequeno e perigosamente gentil...

nada mais urgente que um muro diante da consciência. ou seria o contrário?

"boa noite... e boa sorte"
p.s.: na certeza da aurora que nos refunda o espírito.



foto por Any Manetta, via Flickr:Public Domain

15.8.06

Darjeeling Tea Break

É terrível acordar depois de ter dormido um dia inteiro com as costas doendo, as pálpebras pulsando e um sutil zunido diabólico ardendo longas paisagens insólitas no ouvido.

(ouvido não, orelha. porque orelha ainda resta, como vocábulo oficial. mas ouvido me parece muito mais refinado. "sou todo ouvidos" é de antanhos, lembra aquele senhor de gravatinha borboleta e bigode curto e irrequieto, oscilando sempre para a esquerda, como um tique irrefreável - mas enfim: ainda respeitável protocolo. "sou todo orelhas" é pedir uma carimbada na testa. às vezes, contudo, eu arrisco. mas ninguém entende. bolas)

acordo com o poente bem pronunciado, as sombras esticadas no gramado e um tom de luz avermelhado que invade a sala nos reflexos poucos mas intensos, se esparramando nas paredes de forma enviesada e calorosa.

em pouco tempo tudo se aquieta, portas se encaixam nos batentes, maçanetas esfriam, geladeiras adormecem. é hora dos relógios começarem seu compassado diálogo: o da sala com o da cozinha, sempre a mesma anedota. se riem ou apenas soluçam, não deixa de ser igualmente enfadonho: esse motocontínuo de espaços regulares rumo o infinito.

e aqui me sento, então, prestes a reciclar o prato frio que fica sendo o último post, e pra não deixar morrer essa iniciativa, resolvo empunhar novas alegorias do meu pequeno bunker, meu refúgio do mundo novo, onde apenas minhas criações podem, invariavelmente, sobreviver.

lembro - porque quero ampliá-lo - de um poema começado há tempos, nunca terminado. começarei por ele e, se tiver inspiração ainda restando na cachola, hei de fazê-lo engolir seu novo capítulo, agora e já: no improviso que sempre dita a escrita destes posts do meu Cleptocronia:


minhas noites são polares
muitos sóis sem nome cruzaram minhas cartas
em vão catalogo as razões da espécie

te vejo sempre longe, trepidante miragem
e longe disforme penso que sorri pra mim
aceno, incerto de resposta


ao que acrescentarei, embalado nessa vaga que me arrasta:


hibernando plácido e memorioso
à espera do dia da hora e lugar
que não chovendo te ficarei a sorrir

como um dirigível que lançado à própria sorte
vomita gotas de chumbo e atômica flor
sobre antenas e baionetas contra
do Deus toda a vontade

feituras do braço, tendões de arame
mordaças de sílica e a fome (e a fome)
e restando só um - no meio do campo - alguém gritasse:
- vai-te daqui, Homem das Fronteiras!

Porque só assim teremos Paz
margarina no almoço e no jantar
o cão atrás de seu rabo
e a criança de plástico à frente dos tanques



e que assim seja.



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1.8.06

Porque quando acordei as nuvens ainda navegavam, pesarosas naus de ícaros alienados. E porque me fiz de pé agora esqueço e sento novamente, e despisto

com o aval do gato que dormita em meu colo, e nada sabe do amanhã - como eu tampouco posso.

Atrasado para o amor de rotina, vou deixando que ele espere sem que possa me ouvir ou conjecturar - estou a revelia, hoje estou a revelia. Descansando as mãos sobre o mouse e pensando nalguma frase de Edward Said. Não há tempo para a xícara quente que me adoce as mãos, mas talvez para alguma intempérie descartável que, somada às milhões diárias do cibermundo, nos faça menos vulneráveis e mais domesticados.
Talvez tudo não passe de um complô psiquiátrico. Mas também penso, com muito gosto, na possibilidade de estar vivendo o filminho da minha própria vida, antes de morrer definitivamente. Eu? estou imobilizado num leito desgastado de hospital público. E a vida segue como um filminho: inexorável, pois já está feita. Estou saboreando por segunda vez, apenas mentalmente, meu próprio passado.

Ou talvez, numa dimensão paralela - tanto quanto os espelhos das salas de investigações, donde se pode enxergar através do lado escuro, mas não pelo outro espelhado - esteja sendo vigiado pelos espíritos dos mortos, que se riem das minhas mazelas infantis, dos meus gozos pueris, da minha ineficiência e incapacidade de abarcar o mundo.

sei lá.

vou te esquecer novamente... e depois voltar à carga, feito um bisonte ensandecido. então você me pega pelos cornos, enquanto eu te lanço ao ar, antes de rasgar teu ventre. daí ficamos assim, ao relento, esperando os corvos, ambos satisfeitos e sorridentes - gengivas à mostra, lábios espedaçados.

feito?



como hoje, esta manhã aqui em casa estava particularmente enevoada (megaton_nero, 2006: any rights reserved)

14.7.06

Valentino Revive

5.7.06

Jasmine Tea Break

daqui não prometo nada; daqui prometo a memória vacilante. daqui me lanço, aqui me posto, me publico; donde estou, se para cá não vim? mas estou, ainda assim, queira como quero, queira expirante: sublime é a decomposição visual das cores, é o amarfanhar de alguns rumores, e o incerto com que ganhamos o mundo - todos os dias de manhã chuvosa e malencarada.

a você, que me escuta no seu radinho, que se escuta com devoção e capitaneia esforços em minutear diante da tela fria, você que se esforça cotidianamente em derivar - essa rebeldia silenciosa à natureza do concreto e do aço que julgam nos imprimir suas rotinas mitômanas - e sente o coração pulsando e crê que ganhou alguma brevidade de emoção pardacenta e melancólica, se defronta com o relógio que te empurra os flancos com vagarosa e determinada insistência... ao chão. a você, que luta inconscientemente por um mundo onde a inércia não seja um fim, mas o meio em que todos estejamos absorvidos e radiantes, e onde a música dos ponteiros possa enfim desaparecer. a você, enfim, que do fim pouco sabe, do nada supõe, de tudo se esquiva e de si espera apenas a coragem necessária para quando te chamarem solenemente pelo nome, te florirem e lavarem no sal dos olhos, despejarem na umidade dos infernos palmejantes e assim sendo dar conta de que, afinal, chegou a última cena:

um momento de repouso à razão, efêmero e volátil como sói ser Improváveis Efemérides .

4.7.06

'Tarantinesca' (inédito! ...e recuperado)

aqui publico o conto de um amigo meu, que há muito estava perdido (o conto, não o amigo: vejo-o todo dia, e ele, como se soubesse, me retorna o olhar no exato instante em que o atinjo, visual. costuma também macaquear-me os movimentos, e tem a pachorra de fazê-lo sempre invertido, o sacana).

a dizer ainda: somente que chamo de "conto" por não saber como classificá-lo, ao certo. fica ao seu encargo, leitor, reclamar o que falta (e falta tudo: é nada mais que um improviso literário, um exercício de imaginação diante de uma 'cena-clímax', onde se entra de supetão e se deixa antes do fim.


ao seu sabor, deixo-os com 'Tarantinesca', produção de meados de 2002 (por favor, não notem o bolor).




Vacilei.

o instante era justo, preciso.

mas nada parecia encaixar, as fotos no chão, o lustre arrancado, o fio
envolto em sangue envolto ao pescoço da bela jovem, longe já o último
fôlego.

(som de tambores no corredor. a porta era o próximo passo)

escondi a arma e pulei o balcão. cáspita! o pé resvalou no precipício
iluminado da cidade. devia ser a coca, aquele canalha do Federico,
aquele animal injetara coca na minha veia, mas estava dopado e o sangue
brotara líquido pela mesa e o Dr. Nikos não gostava de ver sujarem seu
belo inferninho...

esgueirei-me no quanto pude pelo parapeito, na quina eu teria de
saltar, que se ferrasse se eu tinha as duas pernas baleadas e um tijolo
no bolso, mais um passo, e a gente ia ver.

a frente estava toda tomada pelos macacos do Dr. Nikos. ..sem um tiro,
entendem? sem espalhafato. tragam-no aqui. mas tudo na calada! sem
tiros, sem espalhafato. ou alguém vai tomar depois...

eu tinha de pensar rápido, mas Louise com a cesta ainda ecoava por
algum corte na minha cabeça, talvez o encanamento exposto das calhas,
talvez apenas um apoio para alcançar os vidros do andar inferior,
Louise, os olhos no último esgar mirando o teto... é, talvez os canos
agüentassem. alguns helicópteros vinham dar com as luzes no peitoril
do oitavo; eu então quase no sexto.

mas o som dos tambores agora tilintava munição pesada, e entrar não
parecia uma boa idéia.

o salto! e o edifício já era quase irrealidade, figura a mais no
recorte perdido de uma periferia urbana.

caí com tudo, rolei sem conseguir agarrar (som de pianola pelas telhas)
os dedos procurando, o telhado sumindo sob o corpo e o sangue
gelatinoso, quase graxa, quase enferrujado no resto de camisa, os dedos
procurando, via o céu crescendo pra trás, as antenas mais longe, os
dedos, merda!

vazei no espaço. torpor. achei um cabo no aquário do vazio, agarrei
o cabo com a fé dos dedos sujos

do cabo sem pensar ainda em queda até o mastro da fachada, do outdoor
de neon, aquelas coisinhas que torram em vermelho.

já podia avaliar meu estado: por um braço estendido sobre a cabeça,
pendular sangrando como uma penosa `as vésperas do Ano Bom.

dali enxergava as costas dum figura no quarto barato da pensão em
frente.

um dedo escapou. em vão dei ordens para alcançar o cabo. estava
insensível aos meus apelos. a mão toda ameaçava amotinar-se contra
mim. o chão girava, longe e oscilante. escorreguei sem esforço até
uma janela mais lúcida e mergulhei com os pés chapados.

o estouro soou fraco. na sala da senhora com a xícara e o gato eu me
desfiz dos poucos estilhaços que trazia.

meus olhos procuraram mecanicamente pela porta. logo, eu varava os
corredores.

descer, sempre descer, descer até o inferno, dar de cara com os gorilas
do grego imundo e pôr um fim nisso tudo. vi num flash a cara lambuzada
de Federico, lance antes da queda forte, meu punho mirou certo a massa
de meu algoz, agora inerte num canto do quarto com as fotos.

sorri, nem sei de quê. neura, nervo.

descer (as luzes apagadas), descer tateando no breu que dava acesso aos
fundos; dei na porta de serviço. após, a liberdade. após, o talho
fresco que liqüidaria o gringo e vingaria de vez por todas tudo o que
fizera com Louise. era pra pegar no pulo, na mão. chegar de manso,
sorrateiro. o chefe não o conhecia... mas depois seria mais fácil
respirar. ou então seria apenas o começo de mais um longo e exasperante
capítulo.

puxei o pouco da atmosfera fétida que me cabia no peito. mas não podia
capitular agora. eles estavam em maioria. mas era tudo ou nada. a
respiração dificultada, marcas pelas paredes que iam sumindo no negrume
da noite dentro.

enfiei o pé na porta, dava pra um pátio largo, muros altos, saída a
esquerda, por um corredor estreito. única.

seguia os pés sem convicção, até que o silêncio me estranhou.

logo, o som de tambores.





(improviso sem revisão)

Martin Montenegro.

3.7.06

...Parecido Com Quem?!


Esta é a minha foto - por rara que seja, nestas páginas - sem tirar nem pôr. É verdade que o leve tratamento em Photoshop para transformá-la em imagem P&B acabou por ELIMINAR alguns traços importantes do meu rosto, como as linhas ao redor do nariz, entre outros. Mas foi, enfim, a imagem que me transformou de um joão-ninguém em um "sósia" de ninguém menos que Mike Oldfied (? - com 70% de "parecência") e Salma Hayek (?! - liderando o ranking geral, com 73% de... similaridade? ), ao lado de algumas outros pseudo-clones meus (Bjork, etc).

Quer se sentir um perfeito "Mil-Faces" ? Consulte os computadores da 'My Heritage Face Recognition', e viva seu instante de fama - pessoal, intransferível, e... nonsense.

21.6.06

O Rei Morreu: Viva O Rei!



“Dos dias, o sinal se nota

Levo a parede pelas costas
No canto há uma criança morta
Meu sangue pulsa sem resposta
(A vida é assim mesmo: farta)”


: há exatos 04 anos, esse era o fim de mais uma história que a carne viveu...
mas também no específico dia de hoje tenho novos brotos, digo, novas árvores a comemorar - pelas floradas, pelos frutos doces e maduros, algo ácidos: mas afinal, que seria da juventude sem a 'citricidade' típica? e juventude é, afinal, tudo que posso esperar, para sempre, dos amores que brotam dessa senda, desse pomar, desse jardim dos prazeres, do prazer de viver e marcar de novo a mesma carne - minha memória fervente aos toques do mundo.

à ninfa dos meus sonhos (e da minha vida), que hoje me alimenta o espírito e a carne, meus melhores pensamentos e intenções.


ilustração: "Les Nympheas Blanc", de Claude Monet (1918?)

20.6.06

Cartas Jamais Escritas – Re:

tudo é evidente neste jogo (e o jogo está evidente em tudo): basta atentar para a própria existência para constatar que o ‘nada’ é um relance poético da memória autônoma em você. mas não, não vale à pena lutar contra ela. pois qualquer que seja o resultado, a teoria dos jogos valerá em ter previsto infelizes soluções: um homem sem memória é alguém que apenas nasce, a memória sem o homem é um vago esgar de morte, perene. no mais, experimentamos a suspeitável sensação de construir uma vida, um caminho, uma sequência de experiências mais ou menos bem-sucedidas, com começo determinado, um meio mal explicado, um fim hipotético.mas talvez pensar que “perder é conquistar a certeza de voltar ao ponto zero, ganhar é iludir-se em dar o primeiro passo” nos traga de volta a dimensão do problema. o quanto estamos preparados, quando a hora chega? para tudo, estaremos sempre no ponto zero. e sempre vivos: a memória não é rival, é cúmplice. por saber que o ditado é velho é que não esqueceste a primeira, nem a segunda vez – a memória nunca poderá derrotar-te, e o ponto zero nunca é igual (ou é todas as infinitas possibilidades: o universo em si mesmo)…

a saber: o círculo não é redondo.

abraços,
Megaton Nero.

foto por Any Manetta, via Flickr:Public Domain

19.6.06

Cartas Jamais Escritas - Preâmbulo

escrevi-lhe a respeito de minha memória nebulosa, do medo que tenho de tornar-me um alheio, um transeunte, tão logo este funesto aparar dos fatos se torne um aparar do tempo, dos sentidos, do horizonte. poderei ainda ser eu, sem distar do longe e sequer do perto, sem preencher limites palpáveis, um corpo, um crânio, o ardor de ser quem sou?já não tenho certeza. e repensar o caso é encurtar a corda, pois a memória falha da palavra mesma não reproduz – antes recria – o recém proferido, e o faz ecoar – sem arestas, sem respiros, sem virgular – uma dezena e mais de vezes; e o pensar fica pequeno, as idéias desprovidas do afã, é tudo gasto, repisado, revisto. fico sem saber se é a enésima vez (ou enésima primeira?) que descubro o mesmo velho ditado, que me retorço à mesma (?) velha piada. o mesmo velho sol perde altitude, perde cor; porque nasce todo dia é que não é mais mais sol, não é nada: talvez apenas um eco caricato da estrela que, no dia primevo de minha consciência de mundo, riscou no céu um caminho ao poente. serei nada então, quando as brumas do descompasso engolfarem minha noção de tempo, de espaço, de espelho?

no enquanto, sou a memória viva dentro de mim.

um abraço,
A.Montenegro

foto por
Any Manetta, via Flickr:Public Domain.

23.5.06

Cap. 7º - Onde Se Versa Sobre 'Primal Scream' Não Ser Pra Qualquer Um

...só pra insistir mais um pouco: os outros tem "personal style". Monk tem "primal scream". pronto! falei. pensei nisso uns dias atrás. agora deixa pra lá...

e porque gostar do torto, do desalinhado, do febril enviesado? porque lá existe rebeldia, nem que seja apenas um buraco negro faminto no espaço, engolindo a força de gigantes vermelhas e anãs albinas como um potente ralo dimensional.

é aí que entra o filme de aberrações do Tod Browning, falando justamente de anões e gigantes - nos quais se a estética não convida ao saborear visual, sequer tátil, têm na grandeza de aspirações sua valia de heróis (mais-que-humanos).

e porque não tenho mais tempo para perder com 'A Construção do Mundo', mas sim apenas com amenidades artificiosas, e o livre e inconseqüente consumo - que se realiza no ato em si - não posso me sensibilizar com as 'trivialidades' de uma Natureza desgovernada: grandes avalanches, novas atlântidas continentais, enormes liquidificadores de vento que arrasam as planícies por onde erram: nada mais me impacta. Mas talvez o último filme de ação impossível lançado nas telas grandes...

fica pelo chão as marcas que areia nenhuma há de cobrir: minha 'linha-de-mundo' que atravessa - desavergonhadamente - o caminho são e vaticinal.

...e agora volto ao miolo da fuligem espessa.

18.5.06

Cap. 6º - Onde se conta uma só história - em dois tempos

e porque me sinto às vezes como um animal irrefreável, um touro enjaulado, prestes a ser lançado na arena, é que estranho - verdade seja dita - como isso ainda não despertou uma figura "minotáurica" no meu espelho, quando com ele componho nosso face-to-face, toda manhã. verdade que nem mesmo posso evocar a falta de substância que me cerca, como exemplo de possível desvirtuamento, isso lá é. substância tem sido um capricho que meu bem querer tem tomado em sua atenção de honra, então seria eu, gritando, na cajadada desferida contra o próprio pé.

não, não, não. resta a mão estendida à bolachada.

(...)

há dias em que perco o fio. este novelo só consegui desatar hoje, 3 dias após o início deste novo capítulo - modo como resolvi chamar esses monólogos sem pé nem cabeça que aqui apresento ao saborear alheio.

acabo de ver Monk tocando a minha (e de muitos) preferida: 'Round Midnight. Ele com o quarteto, numa gravação que deve ter pelo menos umas 2 idades minhas, mas que permanece vanguarda pura, na essência. E, por outro lado, extremamente formal: certos valores o barbudo nunca abandonou. nem eu.


queria entrar, nesta noite, no barracão com Thelonious e as granadas sobre o piano, o general amordaçado num canto e aquela simpática vaca de presépio ao fundo. queria ir fundo na sua música, chorar com ela, dançar como ele. queria sentir o gosto do carvalho nos vinhos, e de framboesa, de baunilha, de madeiras mais exóticas e frutas menos conhecidas. ouvir a música que só os físicos ouvem, com suas composições de universos possíveis. queria, na verdade, comungar com o espírito dos naufragados: todos os homens que deram suas vidas pela arte, pelas ciências, por honrar o dom a que nem centenas de enormes parabólicas, voltadas às profundezas gélidas do espaço exterior - ininterruptamente - conseguiram encontrar eco: a inteligência.

dentre tudo que ocupa espaço e perfaz significação aqui, nessa dimensão, só nós podemos ouvir e compreender a Verdade. e isso diz tudo (agora vou voltar ao Monk, presente da Melissa-de-Itapuã a este inveterado amante dos deslocamentos complexos do ar).

14.5.06

Cap. 5º - Que diz ainda estarmos no caminho certo

há um repente que dói, mais que o espaldar das cadeiras. é a música sangrenta, odiosa e vil, e provoca rebentos em meus olhos aguadecidos. a música não enjoa, transpira a minh'alma derradeira, de gente que me faço agora. queria ser tronco, ser furo - ou não ser: que sentir o peso dos olhos sobre meu cadáver.

é difícil percorrer as ruas assim, sem braços. sem rosto. porque na rua a gente anda de encontrões, se arremessa diante dos transeuntes, dos elefantes de aço que cospem fumaça. na rua, o silêncio é vazio.

lacerantes violinos ainda me atormentam, a prestações. fujo de mim mesmo - para eu em mim: como o rato desinfecto que galga a roda rangente de sua gaiola. orgulhoso.

isso pra não dizer que sinto, de verdade, cada grito ancestral que se encerra em meu sobrenome, cada reticência das ervas que me são servis e caladas cumprem com sua função. ...a obediência também leva ao Paraíso. e elas hão de ter o delas.

13.5.06

Cap. 4º - Da necessidade de ser visto

eu deveria escrever sobre a felicidade de escrever - pura e simplesmente assim, mesmo - pela alegria de desopilar o fígado e os rins de lambuja, sei lá por qual via, isso é o que menos importa. escrever é o que importa. pois escrever é pragmatismo puro; escrever é contundente, exato e preciso. viver não é preciso.

apontar os dedos sujos não é a mesma coisa, mas é o que fazem os pequenos megalômanos de hoje: turba desgovernada, isso sim. menos construções e mais desordem. ces't la vie. ossos do ofício, ainda posso dizer... mas que ninguém me interrompa quando a seleção pisar no gramado.

mas, falando de novo sobre o viver impreciso (e o alinhavar palavras com exatidão), eu... na verdade já estava no "menos construções"... então, que seja: (essa eu vou escrever acompanhado de um pop tex-mex qu'está fazendo relativo sucesso entre a comunidad latina. só confete...) viveremos o dia em que nem os imensos monolitos nem as torres de vidro fincarão suas bases sobre o chão que pisamos? será verdade que Nova Iorque virará um grande deserto, cheio de motoqueiros, lagartos e garotas vestidas apenas com tiras de couro? que futuro atemorizante nos espera? onde nos esconderemos, em que bunkers, que abrigos? oh, Mundo Cruel! que legado nos deixa, a que vilania nos obriga..?!

12.5.06

Cap. 3º - No qual se explica porque o circo não pode parar (de queimar)

(começo esfregando as mãos, pela terceira vez. cada vez que tudo desliga é um improviso a menos, uma aquecida a menos. o riso, na 30ª, nem força de expressão é: ...é cãibra)

...perdi. as palavras, para sempre. ainda lembro de uma ou outra, mas o todo, o significado aleatório que tanto me custa, esse me foi perdido, me foi roubado, foi suspenso. que mão poderosa é essa que me tolhe de conspirar aqui, alhures..?? em que tribunal hei de resgatar, dia quiçá, esses disformes esgares de humanidade? porque, sim! eles me pertencem: a forma errática, o mal necessário, o vagar entre-letras que me transforma, sendo eu mesmo, em outro nada igual: um pária da lógica e do linear.

assim se faça! onde quer que esteja pensarei em você, porque me disse. mas vamos às palavras, se é que ainda trago alguma no bolso:

"o homem germina cego e mal-amado no seio da noite escura." (ou seria: "o corpo, como uma planta, cresce em direção à luz"?)
e também:
"mas o vento, os besouros e os cupins o nutrem de espaços e falhas, tumores e falhas, principalmente. e ele se retorce(...) viciante. (...) por que atear fagulhas à chama d'O que sempre o Amou?"

versei sobre a conquista do "errático, aleatório" que nos torna menos iluminados, mais próximos da terra que nos gerou (?). Terra anciã, essa mãe austera e selvagem. dizem que no fundo ela canta, chamando todos os seus de volta. soa como um sussurro, soa como muitas mil vozes dissonantes que se encontrassem e se amparassem, mutuamente. a grande lição. comovente (e em Lá).

Essa partida foi um oferecimento do sr. e sra. Lumes d' Vidro, ele pelo seu aluar de ouro (40W/127V), ela pelo bailar de morte - torrando o gordo abdôme no cristal do sr. Lumes. ah!, o amor...

11.5.06

Cap. 2º - Onde se espera que nada mais aconteça

cada vez mais frio: é hora de ensaiar mais um pouco...

o breu lá fora é como uma enorme parede negra. como muros que cerrassem minhas janelas, como estar soterrado no ar enfumaçado, no escuro do futuro, do tempo incerto que corre veloz contra os meteoros e discos. todos estão fugindo do caos iminente, galáxias em formação se separam rumo o infinito de solidão e desesperança. mas ainda há de passar essa maré, tudo se voltará para dentro, como um cobertor que se volta sobre si mesmo, como alguém com frio que se enrola no meio da noite, e volta a entreabrir os lábios sobre o lençol; e nesse cobrir levasse todo universo a se cumprimentar uma última e centrifugante vez. é o sono de Deus que nos envolve, o mesmo sonho iluminado que nos criou e mantém. e todos, sem exceção de partícula alguma, de gelo ou minério bruto, nos fundiríamos num ponto qualquer, um centro qualquer - donde partir, repovoar e reconstruir outro Universo seria mister, seria urgente, seria irreversível.

penso no dia em que não mais estenderei os dedos para te lançar oferendas. sequer conjurar improvisos e desvios. serei eu mesmo, quase fetal, os braços cruzados sobre o peito (ninguém diria coisa dessas), com o pó conjugando.

lembro da amarelinha de Cortázar: ele dizia de formigas e um tipo simiesco que se perdia em observá-las. nem sei ao certo seu nome, mas poderia chamar-se como o livro que ainda hei de escrever, um dia. "Heart Shell", eis o nome. Porque o inseto leva sua vidinha tatibitate, canhestra, com entrega inédita e quase imprudente. Mas o hominídeo..!

sei que o vento levará também estas. Então bocejo, pestanejo - e me calo.

10.5.06

Parágrafo Único:


onde mora o coração do Homem, ali também está o seu tesouro.

Cap.1º - Onde se trata do desaparecimento da palavra

... é quando sinto que suas (minhas) respostas superam as minhas (minhas) perguntas. e vai além, não deixam brecha. por que, afinal, eu procuraria outra coisa? engraçado. e o ato de escrever perde sentido, porque sempre mascarante, mascarador. e por pensar nas teclas a teclar eu esqueço o que penso, ou pensava. e me preocupo em apertar os botões. juntar as duas coisas passa a ser a meta a alcançar, o ponto e objetivo a ser batido. pensar sem parar, teclar sem titubear. eu estava pensando na história do Chandra, em como... preciso tomar um chá. já volto... (...)

... aproveitei pra dar uma mijada. caramba! esse frio da alta madrugada congela os ossos. só as pontas dos dedos se mexem convincentemente. o resto adormece, se não dormita, verdade, em estado de semi-hibernação. chá quente à mão, ávido por teclar imprudente, volto ao computador, onde Kronos Quartet é sempre uma boa companhia, nessas horas frias e solitárias. mas isso ainda vai ganhar corpo, vou cortar um monte, então não me preocupo com as beiradas possíveis. tudo isso é lixo, mas do lixo tirarei a vida que me constrói, seus enigmas decifrados, suas chaves para um vislumbrar mais depurado de mim mesmo. se é o que quero dizer, mas acho mesmo que não. tudo é teatro, eu sou teatral. patético. o chá ainda está muito quente. mas isso é informação inútil, e depois será podada. ao menos eu exercito os dedos sem culpa. sei que sou 20% descartável, ao menos. deixem que então eu 'expila' esse quinto prolixo. esquentar as mãos no chá, na caneca de chá, ainda é uma arte, desde e antes que eu a descrevesse a uma obtusa garota, num e-mail, uns 4 anos atrás, apaixonado que estava por suas covinhas ladeando o sorriso lacônico e uma difusa pinta que minha mente, nesses tempos últimos, fez por duvidar da existência - mas que, se é veraz, ainda está lá, caindo pelo canto do lábio, à direita do coração. depois descobri que o sorriso era um cacoete, não uma inteligência, e desanuviei.

mas eu dizia do Chandra. Ele corre atrás do deus da Lua pelas vielas de seu vilarejo, mas o deus cavalga em sua "biga", ou coisa que o valha, e está sempre à frente, sendo puxado por dez velozes cavalos, que mais parecem raios de luar (sua charrete/ carruagem/ biga é a própria Lua!), e ele os chicoteia, quase alçando vôo. e quando Chandra tenta alcançá-los, consegue agarrar o vespeiro onde o deus prendera o luar que carregava a sabedoria das coisas da infância, deste reino, estado de espírito que é a infância. ou alguma coisa assim, bem abstrata - mas que deve parecer simples e concreta. terrível, ando pensando nisso há meses. mas vamos lá. então o menino tem o vespeiro nas mãos, que - novo! - o deus iria levar para casa, mas não viu que deixara pra trás na fuga, de volta para sua "morada". é lua nova, os mortos podem falar com Chandra, assim que ele atravessa os portões da cidadela, e indicam o caminho a seguir. Chandra caminha em direção à floresta, e às suas entradas, ouve as cigarras que tentarão seduzi-lo para devorar seu cérebro, pensando que se trata de uma raiz, um cerne de madeira podre. Chandra não sabe mais se identificar, não sabe que é um menino, menos ainda que está em busca de sua identidade, e nem seu nome. é nessa condição que as cigarras tentam atacá-lo, mas ele se apavora, e alguns tigres o ouvem, quando passam por perto (...)

isso me lembra de outro trecho que talvez coloque no "Pseudo": os ratos que invadem a cabeça das pessoas pelos ouvidos ou pelas narinas, enquanto essas dormem, e ali se instalam, devorando o cérebro, lenta e gradualmente. os ratos são portadores de um vírus mortal: a curiosidade. basta que alguém seja "invadido" por um destes roedores, e começa a fazer perguntas e mais perguntas. até que um dia morra de curiosidade, se esta não for satisfeita. o que acontece é que a informação incha o cérebro, e sufoca o rato, que precisa de espaço pra sobreviver, por isso rói o cérebro - a "informação" - que ali encontra. a pessoa que está hospedando o roedor começa fazendo perguntas, inicialmente. depois vai perdendo o conhecimento de mundo, das coisas, do tempo e do espaço. e termina sem saber de nada, com a cabeça vazia. à beira da morte, já não faz perguntas, sequer tem voz. apenas gemidos e choros mastigados. rói objetos e alimentos crus, e qualquer coisa que se lhe der nas mãos. depois que cai ao chão, só vegeta, até o fim. vai ficando verde, depois ocre, depois vira terra, e seu coração se transforma numa raiz fértil, uma batata-doce, talvez. os piores viram mandioca selvagem. alguns ainda tem a sorte de virarem mandioquinha, e já ouvi casos de curiosos mortos que viraram amendoim, com as sementes se espalhando pela superfície antes do tempo, todos bicados e espicaçados pelos pássaros gigantes.

queria ver você lá. esse jazz , e algumas garotas em cima do balcão, sinuosas dançarinas. uns trouxas enrubrecidos de alcohol, e só. já vai fechar, as cadeiras estão em cima das mesas.

agora vou dormir. só vou deixar acabar essa do Thelonious Monk, e vou. só mais essa, é pra valer. que eu já estou caindo em cima do teclado, e revirando mais que erva do diabo - nunca mais como a carne com abóbora que a Sandra faz! esse abajur até que funciona, é bacana. mas tudo se ilumina: agora tenho um bom palpite...
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SAO, SP, Brazil
...just someone playing hard.

Um Passado a Revelar