Quando criança, eu gostava de ficar ouvindo os eletrodomésticos de casa funcionando, ininterruptamente.
Cantava junto ao zunir do aspirador de pó até que nossos timbres se harmonizassem, num mantra pós-moderno.
Mentalizava revoluções rítmicas de alta aceleração, acompanhado do liquidificador.
Me deixava levar por horas, alheado, ao som compassado da máquina de lavar roupas, imaginando fascinado um instrumento - que eu não sabia já ter sido formulado - chamado moto-contínuo.
Quando criança, por muito tempo levei na cabeça o problema de tentar expressar algebricamente a condição do círculo - que ao contrário das outras figuras geométricas, não possui faces externas limitadas (ou possui infinitas).
Queria crer que o tempo-espaço se comportava de modo particular dentro das bolhas de sabão (embora ainda não o soubesse verbalizar), e que quando duas se encontravam, era como dois universos em colisão, ao cabo da qual desapareceriam: as bolhas estouravam.
Quando criança, meu mundo acabava nos muros, meu céu era um grande cobertor azul, e meu cobertor era uma complexa geografia de vales e montanhas pelos quais viajava com meus brinquedos.
Meu brinquedo era criar-descobrir o mundo insondável que me envolvia.
Hoje meu mundo é elementar, óbvio e redundante.
Minha função é acrescentar braços à burocracia que me mantém vivo.
Os muro caíram - e atrás havia ruas, edifícios e mais muros. O cobertor desta rotina às vezes é curto.
Mas o céu desvendou-se infinito, e para além a complitude acenou-me com o colorido de minha intuição primeva, sussurrou-me o caminho dos ventos e das pedras, lá depois de mantras e liquidificadores, geometrias e incongruências, onde o tempo nos consola e o espaço nos abraça, eterno.
FICÇÃO, s. f. Simulação para encobrir a verdade, fingimento: a torpe ficção de patriotismo, com que se investiu para indultar-se de matador de Titãs, de Cronos e quimeras (rapinagem de Camiliana.) Perturbou-se e estremeceu diante de ficções a que nem a poesia ou a arte davam realce e prestígio (Silveira da Mota, 1889) // Fábula, invenção fabulosa ou artificiosa// F. lat. Fictio. CLEPTOCRONIA: tempo que escoa, que nos assalta, que não perdoa