e tudo se sobrepõe, não só agora mas desde sempre. antes me valesse dos benefícios dispensados aos acrônicos de toda sorte, relegados à margem dos camarotes jocosos, da janelinha angustiante. sou dum tipo que não se mede em finitudes. se acredito vencer pelo cansaço, este breve me contradiz empilhando tangíveis carências e papeladas.
não começo porque não há começo possível. a vida não tem começo. já existia antes de mim, já era velha baleada quando cheguei por aqui. meu máximo foi um meio-termo irresponsável - mas bastante para preencher o espaço que me esperava, desde eras imemoriais. a figuração não requer holofotes atentos, mas também tem seu lugar.
e, no sem-fim de takes milhares, vou aprumando a hora da espera, a última, fatídica, inglória. a espera do torpor. porque deve ser assim mesmo, lento apagar de buzinas desafinadas, ganidos vagabundos, choros sem vela.
carimbar deve ser uma arte milenar, cheia de significados ocultos e ritos perdidos. não é difícil entender o quão perdido podem estar: ritos rasos, ratos rotos, relatórios - em meio a papelada que nem milênios conseguiram livrar das mesas acanhadas de quem pratica esta nobre função. o que seria do Império sem seus mestres carimbadores?
segue-se o estampido surdo, o tapão bem dado ou irregular, mesmo movimento manual que já selou destinos tão diferentes quanto o nascimento da cruzada cristã ou o descanso sem volta do impalador Vladimir. não é a mão que esmurrou a mesa e entornou o destilado russo; talvez também não seja aquela que decretou o quique capital do rei de França. mas certamente - e meus dedos trêmulos traem a frieza, a impostura aparente - é desprovida de qualquer sensatez, em sua disciplina cega e diuturna.
* * *
no recorte de braços e pescoços eu a vi, ou melhor, parte de sua cabeça com os lábios e o nariz. e foi engraçado perceber que suas narinas se mexiam enquanto falava; fitava absorto o desenho de seu rosto, talvez tentando memorizá-lo para mais tarde. logo deu com os olhos nos meus, e me surpreendi em perceber-me sustentando aquele breve contato, e além, continuar imerso na auto-sugestão de observá-la a fio, indiferente ao seu desconforto ou satisfação. braços e corpos cortaram-lhe os olhos novamente, e sua boca se abriu, afirmativa à conversa que não era minha. nova parada, e os corpos levaram-me o resto de sua fisionomia - perdida para sempre no enlatado de almas rumando para casa.
por megaton_nero.
FICÇÃO, s. f. Simulação para encobrir a verdade, fingimento: a torpe ficção de patriotismo, com que se investiu para indultar-se de matador de Titãs, de Cronos e quimeras (rapinagem de Camiliana.) Perturbou-se e estremeceu diante de ficções a que nem a poesia ou a arte davam realce e prestígio (Silveira da Mota, 1889) // Fábula, invenção fabulosa ou artificiosa// F. lat. Fictio. CLEPTOCRONIA: tempo que escoa, que nos assalta, que não perdoa
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